segunda-feira, 22 de outubro de 2018

SUPERMAN - 80 anos, 8 histórias #3: "Superman - Entre a Foice e o Martelo"


Bem-vindos ao meu especial sobre o Superman, no qual falarei sobre 8 diferentes histórias do personagem como forma de celebrar seus 80 anos. Essas histórias podem variar entre arcos, edições únicas ou fases completas. Mais do que recomendar quadrinhos, espero que possa transmitir o que cada uma das escolhas significa para mim. Hoje, Verdade, Justiça e o Modo de Vida Soviético em um dos mais marcantes contos do personagem na Era Moderna.

E se a nave do Superman chegasse à Terra com 12 horas de diferença, não caindo em uma área rural do Kansas, mas sim em uma fazenda na União Soviética?

Esta provavelmente é uma pergunta que ninguém havia feito antes. Exceto o escritor Mark Millar, que se questionou sobre isso após ler, ainda criança, uma história publicada em Superman #300, em que a nave de Kal-El caía em território neutro entre os EUA e a URSS, com ambos os lados disputando a custódia do visitante de outro planeta. O impacto da ideia em sua mente foi tão grande que ele fez questão de guardá-la pelo tempo que fosse necessário até que pudesse trabalhar com ela de forma adequada. E demorou, mas ela finalmente pode ver a luz do dia, mais de 20 anos depois de a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deixar de ser uma ameaça e sequer existir.

Superman - Entre a Foice e o Martelo foi publicada em 3 partes no ano de 2003, durante uma época em que não era incomum ver versões alternativas de heróis da DC dando as caras através do selo Túnel do Tempo (Elsewords, no original), o que chegou a render curiosidades como Superman: Morcego de Aço ou Batman: In Darkest Knight (que, pasmem, segue inédito no Brasil), além de clássicos absolutos como JSA: A Era de Ouro e Reino do Amanhã. Desde então, se tornou uma das mais celebradas e queridas interpretações do personagem, seja por sua história, a forma que realizou sua releitura ou os dilemas e questionamentos que traz dentro de seu roteiro.

Não importa a orientação política: o Superman sempre será o Superman.

A trama engloba um período compreendido entre 1953 e 2001, e se desenvolve a partir da questão levantada ao início do texto: a nave de Kal-El cai em uma fazenda coletiva na Ucrânia, território pertencente aos soviéticos, e ele ali cresce até decidir revelar sua existência em público, realizando seus primeiros atos heroicos em Moscou e rapidamente sendo adotado pelo povo e, principalmente, pelas lideranças do Partido Comunista e do governo, ainda encabeçadas por Josef Stalin. Sua aparição não passa despercebida do outro lado do mundo, porém, e o governo dos Estados Unidos logo alerta sua população sobre a existência do "campeão do trabalhador comum que luta uma batalha sem fim por Stalin, socialismo e a expansão internacional do Pacto de Varsóvia", acionando na sequência seu mais brilhante cidadão, Lex Luthor, casado com a intrépida jornalista do Planeta Diário que fez sua carreira como Lois Lane.

Este tipo de brincadeira com o que é conhecido sobre o Superman do universo principal da DC vem a ser um dos principais atrativos do quadrinho. Ver o Homem de Aço pautar seus ideais conforme aquilo que acredita ser certo dentro do regime ditatorial socialista acaba por dar uma nova dinâmica ao personagem, ainda que seu conceito principal permaneça inalterado (dentro de uma lógica distorcida, é claro). Luthor, por sua vez, acaba sendo a grande estrela em seu país ao não ser ofuscado pelo herói, até conquistando aquela que normalmente seria sua esposa, mas sua obsessão pelo alienígena soviete e suas tentativas de derrotá-lo acabam por manter o gênio na posição de antagonista, seja em sua versão cientista louco, magnata dos negócios ou presidente, em alusão às várias fases vivenciadas pelo vilão. Estas reimaginações não se limitam aos protagonistas, no entanto, e acabam abraçando muitos outros elementos conhecidos da editora, rendendo até uma versão socialista da Mulher-Maravilha, um Batman em total oposição ao sistema, um Jimmy Olsen agente da CIA e por aí vai. 

A grande força de Entre a Foice e o Martelo está, porém, na forma com que Millar conduz o quadrinho. Em meio a um enredo repleto de elementos tipicamente super-heroicos e de ficção científica, está um forte comentário político, como é de se imaginar. E o escritor triunfa justamente ao fugir do senso comum, não se deixando levar por uma visão maniqueísta de "capitalismo bom, socialismo ruim" ou vice-versa, focando-se em retratar os pontos fortes e fracos de ambos os sistemas. Quando trata do regime mantido pelos soviéticos, por exemplo, em meio a distribuição de renda, lobotomias, pleno acesso e funcionamento de serviços públicos e eliminação de opositores a sangue frio, fica clara a mensagem: apenas um verdadeiro super-homem poderia fazer aquele sistema funcionar, e não a toa ele fracassou. E do lado estadunidense, a liberdade e a democracia vêm acompanhadas da demonização de seus adversários, do apoio a homens insanos como último recurso, da quebra do sistema capitalista em face de um duro bloqueio econômico e seu retorno à prosperidade apenas através de uma rígida interferência estatal em diversos setores da sociedade. Estes são apenas alguns exemplos dentre vários outros que traduzem o pensamento do autor quanto ao fato de não haver preto no branco quando o assunto é política, apenas áreas densamente cinzas que se refletem tanto no Superman quanto em Lex Luthor, ambos frutos dos sistemas em que foram criados.

Tal clima político seria bem menos impactante se não fosse o trabalho de arte desenvolvido nas três edições da HQ. Embora haja uma clara diferença entre os estilos de Dave Johnson e Kilian Plunkett, ambos tem êxito na execução da proposta de misturar propaganda e símbolos socialistas a um traço muito semelhante ao visto no desenho animado do Superman da década de 1940, produzido pelos irmãos Fleischer. É estranho ver uma mudança entre artistas no meio da minissérie, mas ela faz sentido se pensada como uma forma de representar a mudança de época em forma de um comentário metalinguístico, referenciando-se às eras dos quadrinhos de super-herói, algo que acontece no roteiro através de uma mudança na tonalidade da trama e no comportamento dos personagens. Ou simplesmente pode ter sido algo necessário para cumprir os prazos para entrega das revistas. Seja como for, os dois cumprem o papel que lhes é incumbido, com quadros detalhados e figuras dinâmicas. E, como curiosidade, é justo ressaltar que Alex Ross participou dos estágios iniciais da concepção visual, trabalhando a aparência e uniforme do protagonista nesta reinterpretação.

A Era de Prata dos quadrinhos de super-herói, vista sob a ótica soviética.

Para uma história tão ambiciosa, apenas um final a altura seria aceitável. E o que foi entregue não decepcionou, pelo contrário: o inteligente desfecho para o conflito, seguido de uma gritante reviravolta nas páginas derradeiras, são marcantes o suficiente para fazer com que qualquer fã coloque a obra entre suas favoritas, tanto do herói quanto do meio. É curioso pensar que a conclusão da briga entre Estados Unidos e União Soviética, embora seja precedida por um confronto com todos os elementos clássicos de um gibi super-heroico, se dá através de uma solução psicológica, assim como foi boa parte do enfrentamento da Guerra Fria. E quanto a inesperada virada vista ao fim, sua existência é devida a ninguém menos que Grant Morrison, que aconselhou o então amigo Mark Millar a encerrar a trama de tal forma. Pode parecer uma simples contribuição, mas é difícil imaginar o quadrinho recebendo tamanha aclamação sem este "pequeno" detalhe, que o faz beirar o impecável de cabo a rabo.

Superman: Entre a Foice e o Martelo teve grande repercussão e publicações em todo o mundo. No Brasil, saiu pela primeira vez em 2004, respeitando o formato de minissérie em três edições individuais, que foram encadernadas e trouxeram a história de volta ao mercado em 2006, em uma edição de capa cartonada. Depois disso, apenas em 2017 o publico pode ter novamente acesso a uma versão localizada do quadrinho, com o lançamento de um encadernado em capa dura e preço acessível. Todas elas ficaram por encargo da Panini que, infelizmente, cometeu alguns deslizes em seu mais recente formato e deixou passar alguns erros grotescos de tradução, ortografia e revisão, sendo o mais simbólico deles o "capas" no lugar de "capaz" logo nas primeiras páginas, o que espera-se que tenha sido corrigido em reimpressões posteriores.

Talvez ninguém tenha se perguntado antes o que teria acontecido se a nave do Superman tivesse caído na URSS ao invés dos EUA, com exceção de Mark Millar. Mas a resposta para esta questão acabou por tomar o mundo de assalto e marcar a já extensa história do super-herói mais antigo existente em uma de suas mais criativas reinterpretações. Mais do que isso, serviu para desmistificar imagens criadas durante a Guerra Fria e mostrar que não existem questões fáceis quando se trata de política, um campo que, definitivamente, não permite distinções brandas entre heróis e vilões na disputa por hegemonia e poder.