terça-feira, 23 de outubro de 2018

"Rosa", o episódio que deu o tom a uma nova era de "Doctor Who"


No ano passado, fiz questão de escrever resenhas para cada novo episódio de Doctor Who. Era, afinal, a última temporada tanto do ator Peter Capaldi como o protagonista, quanto de Steven Moffat como showrunner, colocando um ponto final em sua longa estadia na produção do programa. Foi também a única oportunidade de vermos a companion Bill Potts (interpretada por Pearl Mackie), uma personagem que trouxe questões como racismo, orientação e liberdade sexual com mais ênfase à série, que sempre deu espaço para a diversidade, especialmente em sua atual encarnação. Foi uma experiência boa e interessante, mas preferi não repetir o feito desta vez e pretendo falar deste novo ano após sua conclusão, para analisá-lo como um todo ao invés de fazê-lo em partes.

Mas o mais recente episódio exibido, Rosa, obriga-me a fazer uma exceção a esta regra autoimposta.

Até o momento, a 11ª temporada vinha muito bem: The Woman Who Fell on Earth e The Ghost Monument foram os cartões de visita deste novo momento do show, comandado por Chris Chibnall e com uma mulher a frente do papel principal, além de um time de três companheiros de aventuras composto por um idoso, uma descendente de paquistaneses e um negro com dificuldades motoras. De novidades em comparação ao que foi visto anteriormente, o ritmo e a linearidade das tramas, aliados a uma reformulada identidade visual, o inegável carisma de Jodie Whittaker como a Doutora e o funcionamento efetivo e inteligente do trio de personagens humanos são um respiro de ar fresco, ao mesmo tempo que a manutenção da sensação de aventura contínua e elementos de ficção científica pura dão o senso de familiaridade necessário para que qualquer um que assista tenha apenas uma certeza: isto (ainda) é Doctor Who.

E todos estes elementos, claro, seguem presentes em Rosa, mas o episódio seguiu um caminho diferente dos demais por se distanciar do tom descompromissado do seriado e optar por uma abordagem séria de eventos históricos importantes. Tal tonalidade não é nenhuma novidade para o programa, mas raramente foi utilizada para retratar momentos do passado da humanidade, com a principal fuga deste padrão sendo Vincent and The Doctor, focado em Van Gogh e as dificuldades psicológicas que enfrentou ao longo da vida em uma tocante passagem da 5ª temporada. Mas o clima aqui é pesado, grave e transmite uma sensação de urgência como pouco vista antes.

O título do capítulo deixa claro qual seu enfoque: a figura de Rosa Parks, mulher negra que se recusou a abrir mão de seu assento para dar espaço a brancos, foi presa e tornou-se essencial para o início das lutas da população afro-estadunidense por seus direitos civis. A Doutora e seus companions são levados à cidade de Montgomery, no Estado do Alabama, em 1955 pela TARDIS e devem deter uma desconhecida ameaça que quer impedir a ocorrência de tais eventos, algo que, por si só, mudaria toda a história e a realidade em que vivemos de formas inimagináveis.

Durante seus pouco mais de 40 minutos de duração, somos colocados cara a cara com a dura realidade do Sul dos Estados Unidos durante aquela época: racismo e segregacionismo latentes, em que ônibus tinham lugares separados para "brancos" e "pessoas de cor", estabelecimentos que se reservavam a não servir clientes baseados na pigmentação de suas peles e outras atrocidades que soam absurdas e criminosas na atualidade. E quem mais sente todo esse preconceito são Yas e Ryan, os companions que representam minorias étnicas e que, assim como eu e provavelmente você, leitor, viveram a vida toda em uma realidade em que este tipo de ódio ainda existe, mas a situação está "melhor" (como dito por eles), e ver ou vivenciar isto de forma tão latente é um choque para qualquer um.

Diálogos, interações e reações envolvendo o tema aqui funcionam como verdadeiros socos no estômago do espectador, como deveria ser ao se tratar de algo tão grave. Seriedade não é algo novo para Chris Chibnall, idealizador e condutor da série de investigação policial Broadchurch (que também conta com Jodie Whittaker ao lado de outras populares figuras entre os whovians, como David Tennant e Arthur Darvill), mas aplicar tal tonalidade a Doctor Who, especialmente ao se considerar o retrospecto, deixa clara a mensagem de que uma nova era se iniciou para a série, em que questões importantes e necessárias serão retratadas de forma adequada. E se formos considerar o elevado patamar estabelecido por Rosa, que já considero um dos melhores episódios de toda a série, a mudança é mais que bem-vinda.