quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Faltou "The Handmaid's Tale" ao Brasil


O Conto da Aia é um livro escrito por Margaret Atwood, lançado em 1985, que retrata um futuro distópico no qual mulheres perderam seus direitos civis dentro de uma sociedade em que vigora o totalitarismo teocrático militar. A obra foi aclamada pela crítica durante seu lançamento, tendo recebido ou sido indicada a vários dos principais prêmios da literatura de língua inglesa, e ganhou adaptações para outras mídias, motivo pelo qual voltou aos holofotes recentemente: a estreia da série The Handmaid's Tale em 2017 nos Estados Unidos, através da plataforma de streaming Hulu, fez com que muita gente estabelecesse contato com as ideias da autora pela primeira vez.

Estrelada por Elisabeth Moss e com um elenco de apoio de peso, contando com nomes como Alexis Bledel, Yvonne Strahovski, Joseph Fiennes, Samira Wiley e Ann Dowd, a produção teve início em 2016 e foi ao ar em 2017 nos EUA, durante o início da cada vez mais caótica e controversa administração do Presidente Donald Trump que, em sua vida pessoal e mesmo durante sua campanha eleitoral, apresentou posturas e declarações de cunho machista e desrespeitoso acerca das mulheres e seu papel na sociedade. O público feminino do país consumiu e absorveu o seriado como uma mensagem de luta e resistência, diariamente fazendo seu máximo para que a ficção nunca venha a se tornar realidade.

Motivos para isso não faltam. The Handmaid's Tale é forte, pesada, dura de se assistir. O mundo aqui retratado é a verdadeira definição de pesadelo e não apenas para quem é mulher, mas para qualquer um que preze pela sua liberdade. Mulheres que foram reduzidas a invólucros de procriação, servas, doutrinadoras ou donas de casa. Condenação de homossexuais à morte por transgressão. Exposição dos corpos de progressistas em locais públicos. Forte hipocrisia daqueles que estão no poder diante das próprias regras que estabeleceram. Tudo isso se encaixa dentro de uma trama tão agoniante quanto bem desenvolvida, potencializada por uma fotografia opressora e claustrofóbica junto a uma produção impecável, e capitaneada por uma atuação estelar de Elisabeth Moss. A soma de todos estes elementos faz desta uma das melhores e mais importantes séries da atualidade, que não a toa chegou a faturar inúmeros prêmios em eventos importantes como o Emmy e o Globo de Ouro.

Infelizmente, ela não repercutiu tanto assim no Brasil. Não houve muita exposição, há pouco engajamento de espectadores em redes sociais. A mídia, salvo alguns poucos veículos especializados, não deu a devida atenção a uma obra de tamanha relevância e destaque no cenário internacional. E a questão que fica é: por quê? Será que não pareceu algo chamativo ao público? Será que não identificaram nela potencial comercial aos brasileiros? Será que foi ignorada de forma deliberada? Ou será que há algum outro motivo por trás? Não dá para saber, mas seja lá o que ocorreu, acabou por deixar o seriado nas sombras, e não é incomum trazê-lo a conversas entre amigos e descobrir que ninguém ali sequer ouviu falar dele.

O principal responsável por este fenômeno está, porém, na falta de acesso do público. A série vinha sendo exibida pelo canal Paramount da TV a cabo - restrito apenas aos pacotes mais caros das operadoras - e só recentemente chegou ao GloboPlay, serviço de streaming da maior emissora do país que ainda é uma novidade no mercado. E em uma época que as pessoas desaprenderam a usar torrents e estão presas em bolhas de conforto e facilidade da Netflix e afins, consumindo qualquer lixo que apareça nos destaques, isso faz uma diferença gritante. A título de comparação e curiosidade, a página brasileira de La Casa de Papel, um dos maiores fenômenos da citada Netflix por aqui, possui 2,6 milhões de curtidas no Facebook (um milhão a mais que a oficial em espanhol). Sabem quantas curtidas possui a página organizada por fãs brasileiros de The Handmaid's Tale? 33 mil.

Um contato maior com o programa (e, consequentemente, sua mensagens e ideais) por parte do público do país, especialmente o feminino, poderia mudar o cenário que observamos na atualidade, com um número elevado de mulheres aderindo e se mostrando partidárias de uma ideologia que vai contra elas, seus direitos e, em alguns casos, sua própria existência na sociedade, no que eu venho chamando de "o paradoxo Serena Waterford" - assista a série e entenda. Claro que há muitas outras questões complexas a serem analisadas quanto a isso, mas levar tamanho choque de realidade ao assistir àqueles episódios duríssimos de um produto bem feito e viciante talvez já fosse um grande avanço para que se abrisse os olhos acerca destas questões. Este é o papel da arte, afinal: mais do que entreter, ela deve desafiar, tirar o espectador (como é o caso) de sua zona de conforto e fazê-lo refletir.

Nunca é tarde para se começar a assistir a série. Mas diante do que está projetado, é possível falar com segurança: faltou The Handmaid's Tale ao Brasil. No entanto, ao invés de encerrar de forma desesperançosa ao dizer que, infelizmente, talvez seja melhor já ir se acostumando a expressões como "sob Seu olho", "abençoado seja o Fruto" e "que o Senhor o abra", é preferível deixar uma mensagem mais condizente com o que a protagonista interpretada por Elisabeth Moss demonstra com suas atitudes. Afinal, a luta não acabou, pelo contrário. E, portanto, Nolite Te Bastardes Carborundorum.