quinta-feira, 13 de setembro de 2018

SUPERMAN - 80 anos, 8 histórias #2: "Reino do Amanhã"


Bem-vindos ao meu especial sobre o Superman, no qual falarei sobre 8 diferentes histórias do personagem como forma de celebrar seus 80 anos. Essas histórias podem variar entre arcos, edições únicas ou fases completas. Mais do que recomendar quadrinhos, espero que possa transmitir o que cada uma das escolhas significa para mim. Hoje, uma HQ em que os heróis de outrora tiveram que crescer.

A década de 1990 foi um período conturbado para a indústria de HQs estadunidense. Enquanto a parte mercadológica sofreu com a "Bolha dos Quadrinhos", a falência da Marvel e a perda de uma grande parcela do público, o campo criativo também passava por maus bocados: obras seminais como Watchmen e Batman: O Cavaleiro das Trevas ainda influenciavam novas revistas de super-herói, mas não da forma almejada por seus criadores. Apenas a estética e temas superficiais como a violência e a sensualidade foram absorvidos pelos roteiristas e desenhistas em destaque à época, que passaram a apresentar, em regra, tramas fracas, tentando se passar por adultas ao mostrar armas, tiroteios e conspirações aliados a assuntos polêmicos como violência sexual ou suicídio, mas sem nunca se aprofundar em nenhum deles; enquanto as artes eram de cair o queixo, embora sempre sexualizadas. Tudo isso envolto em uma atmosfera de cinismo e trevas, afastando-se do que os gibis foram um dia.

Havia exceções, como sempre há. Esta também foi época do surgimento da linha Vertigo, apresentando títulos subversivos e de temática adulta como Sandman, Preacher e Hellblazer, que fizeram história por sua inventividade, inovação e críticas sociais sempre inerentes. No âmbito superheroico, a Marvel chafurdava em um mar de histórias ruins, salvando-se apenas as sagas cósmicas escritas por Jim Starling, uma ou outra revista dos X-Men e a minissérie Marvels, de Kurt Busiek e Alex Ross. A situação na DC não era muito diferente já que, enquanto o Universo da Milestone Media ia passando quase despercebido pelo público, a linha principal apresentava em especial o Flash de Mark Waid e o recém-iniciado Starman de James Robinson como os principais frescores quando se tratava do revigoramento dos conceitos clássicos de heroísmo para tempos mais modernos.

Alguns dos nomes citados foram essenciais para o que gosto de chamar de "O Retorno dos Clássicos". Um jovem Alex Ross, por exemplo, após o sucesso de Marvels, restabeleceu a parceria com Kurt Busiek para, junto ao desenhista Brent Anderson, criar a longeva Astro City, com todo seu teor de homenagem aos super-heróis, na Image Comics. Ross também tinha uma ideia semelhante a da minissérie publicada pela Casa das Ideias para a DC, resgatando alguns conceitos de Crepúsculo dos Super-Heróis (o trabalho perdido de Alan Moore), e resolveu apresentá-las para James Robinson que, além de Starman, havia tido bastante sucesso com A Era de Ouro, uma história que apresentava os personagens da Sociedade da Justiça em um contexto mais adulto e desconstrucionista durante o pós-Guerra. Robinson gostou da ideia e aconselhou Ross a procurar por seu amigo Mark Waid, um exímio conhecedor da cronologia da Editora das Lendas e, tal qual o artista, um grande entusiasta da Era de Prata dos quadrinhos.

Foi neste contexto e através desta quase mística união de esforços que nasceu Reino do Amanhã, a mais importante obra da DC durante a década de 1990 e uma das leituras essenciais do período. Lançada originalmente em 1996 através do selo Elseworlds (conhecido aqui no Brasil como Túnel do Tempo) em quatro edições, a história se passa no futuro de uma realidade alternativa ao universo regular das revistas de linha, apresentando versões mais velhas de seus principais personagens, quando não os filhos ou herdeiros de seus mantos, em uma representação do conceito de legado, um dos grandes diferenciais da editora, extrapolado ao seu máximo. E embora a minissérie englobe uma larga variedade de heróis conhecidos do público, em especial os bastiões formadores da Liga da Justiça, seu foco, como não poderia deixar de ser, é voltado ao primeiro de todos, o Superman.

O retorno triunfal.

Na trama, situada em um mundo em que os velhos super-heróis saíram de cena ou passaram a atuar nas sombras após um terrível incidente, tendo sido substituídos por uma nova onda de personagens cuja moral trilha um perigoso caminho em que justiça e violência desmedida se confundem, acompanhamos o pastor Norman McCay e Espectro, o Espírito de Vingança, em uma jornada para testemunhar uma enorme catástrofe de proporções apocalípticas, com a qual McCay já vinha tendo visões, sem entender muito bem do que se tratava. Enquanto isso, o Superman, após uma visita instigante da Mulher-Maravilha, enxerga o caos em que a sociedade se encontrava mergulhada e resolve sair da aposentadoria para trazer a justiça e a ordem novamente ao planeta, independente do custo, convocando assim alguns de seus velhos aliados junto a representantes da nova geração que estivessem dispostos a seguir sua visão e orientação.

Em meio a intrigas, reviravoltas e paralelos com citações bíblicas do livro do Apocalipse, o enredo se desenvolve ao mostrar a equipe liderada pelo Homem de Aço tomando decisões cada vez mais autocráticas como forma de assegurar a paz e os velhos costumes através do fim forçado da criminalidade, sempre com a orientação de uma Mulher-Maravilha menos diplomática e mais agressiva do que antes, observada por um Superman que, embora execute as ideias dadas pela Amazona, não se sente 100% seguro quanto ao benefício delas. Neste ínterim, outros grupos começam a se movimentar para que seus interesses se concretizem em meio a este cenário, como é o caso da Frente de Libertação da Humanidade, formada pelos antigos vilões e liderada por ninguém menos que Lex Luthor, além de um novo time de Renegados juntado pelo Batman e também os novos heróis que preferem manter seus métodos radicais, que tem sua principal face em Magog, grande antagonista da história. Os ânimos se acirram quando o kryptoniano e seus aliados decidem pela construção do complexo prisional chamado de Gulag, o que acaba a acarretar um confronto que termina com a literal morte da inocência dos gibis do passado.

O trabalho desenvolvido por Waid e Ross pode ser enxergado através de duas óticas que podem render diferentes interpretações, ambas honestas. Uma delas é a de um leitor leigo, que o encara como uma grande história de super-heróis que levanta questões filosóficas, reimagina o universo DC de forma plausível dentro de seu próprio contexto e apresenta uma mensagem de otimismo e esperança para o futuro. A outra é a do leitor veterano, que consegue enxergar o mesmo que o colega recém-iniciado, mas também entende que Reino do Amanhã é uma espécie de manifesto contra o estado em que os gibis estadunidenses se encontravam na década de 1990 ao exercitar seus conhecimentos sobre o contexto da época e as principais editoras do mercado. Isso é algo dito e reiterado pelos próprios criadores, seja no tempo do lançamento ou nos anos que se seguiram, e que se torna explícito tanto pelo teor da obra, quanto pelo visual de muitos dos novos personagens, como é o caso de Magog, claramente inspirado em Cable, dos X-Men, ou do Americommando que, como dito pela dupla, é "o Capitão América se tivesse sido criado pelo Rob Liefield".

Uma nova era para os velhos heróis.

A arte de Alex Ross, vale ressaltar, caiu como uma luva para o teor da história. Seu estilo realista, aliado ao texto rico e valoroso de Mark Waid, consegue aliar o clássico ao moderno e dá ao quadrinho o tom imponente necessário para seu impacto e êxito, especialmente no que diz respeito aos super-heróis, que não poucas vezes são retratados como deuses ao melhor estilo greco-romano, elevando ainda mais a figura de tamanhos ícones da cultura pop mundial e alçando-os a um lugar em um panteão inalcançável. Mesmo as cenas de ação, que exigem maior sensação de fluidez e são alvo das principais críticas ao trabalho do artista, entregam a dinamicidade necessária e se saem bem no resultado final. É de se destacar, ainda, a composição das cenas e desenvolvimento dos visuais dos personagens, os quais ficaram todos a seu encargo, trazendo ideias interessantes para uniformes que certas vezes acabaram sendo incorporados ao universo regular, como é o caso do Robin Vermelho. E, como curiosidade, é justo informar que o visual do pastor Norman McCay é inspirado no pai de Ross, que serviu como modelo para seus desenhos.

Conforme dito anteriormente, a obra envolve basicamente todo o universo da DC, mas seu grande protagonista é o Superman. Tal destaque não é mero acaso, já que ele, na posição de primeiro super-herói já criado e, consequentemente, grande arquétipo do gênero, acaba por ser a incorporação antigos valores e tradições dos velhos gibis, algo que fica claro na história, especialmente em seu confronto com Magog, representante do que havia de novo. Ao mesmo tempo, é interessante ver durante o avançar da trama que, apesar de seu coração estar no lugar certo, sua cabeça não está e sua visão, tão presa ao modo que o mundo era outrora, acaba por levá-lo a tomar decisões equivocadas que levam a um resultado final irremediável. E é por isso que, ao final, ele cresce e muda sua postura de combativa para humanitária, o que é seguido pelos demais heróis, que passam a ajudar o mundo de outras formas. Esta visão acabou por definir o papel dos personagens na vida real dali em diante, com as boas histórias criadas desde então refletindo-a.

Reino do Amanhã foi lançada em diversos formatos ao redor do mundo. No Brasil, especificamente, saiu como minissérie em quatro edições separadas pela em 1997 e encadernado em 1998, ambos pela Editora Abril. A encadernação foi relançada em 2004 pela Panini que, a partir de 2013, passou a adotar o formato de luxo da publicação, o qual se encontra disponível em lojas e livrarias neste momento. Recheado de extras, conta com um enorme posfácio detalhando muitos dos aspectos do processo criativo, além de apresentar páginas extras que não constavam nas primeiras versões, como é o caso das cenas do Superman em Apokolips conversando com Orion e do epílogo no restaurante Planeta Krypton, que se encaixou perfeitamente com o resto da história e só intensificou sua mensagem.

O cenário dos quadrinho de super-herói estadunidense estavam salvos graças ao Superman e, principalmente, a Mark Waid e Alex Ross. Ou pelo menos até a chegada de uma nova "ameaça"... Mas isso é assunto para outra hora.