quinta-feira, 25 de outubro de 2018

"Transmetropolitan", um grito de sanidade em tempos insanos (ou como a vida imita a arte com requintes de crueldade)


Transmetropolitan é uma série em quadrinhos criada por Warren Ellis e Darick Robertson, respectivamente escrita e desenhada pela dupla, com o último sendo auxiliado por Rodney Ramos. Lançada em 1997 e encerrada em 2002, totalizando 60 edições, é ambientada nos Estados Unidos em um futuro cyberpunk e apresenta o jornalista Spider Jerusalem retornando às suas atividades após se exilar de toda a sociedade por cinco anos. As regras como conhecemos hoje já não existem mais naqueles tempos, nos quais todas as doenças possuem curas, o uso de drogas é liberado, novas religiões surgem a cada minuto, os alimentos se tornaram ainda mais bizarros e por aí vai, sendo apenas a ponta do iceberg. Mas há também o que persiste: a miséria, a violência urbana, a prostituição e exploração sexual - inclusive infantil -, a falta de ética e escrúpulos dos políticos, péssima programação de TV. Através disso tudo e aliado a boas doses de humor, Ellis e Robertson estabeleceram sua sátira do que o mundo poderia vir a se tornar e teceram suas críticas às atualidades da época.

É assustador, porém, ver o quão atual a história se mostra para hoje. Claro, há alguns elementos que não acompanharam a evolução da realidade, mas outros temas se mantêm pertinentes ao que é visto por aí atualmente e devem continuar a ser pauta no futuro por sabe-se lá quanto tempo, o que pode vir a tornar a obra atemporal (e, por ora, é mesmo). Pior ainda é perceber a quantidade de previsões que foram feitas naquelas páginas, especialmente na tecnologia, mas também na sociedade e na política, nos quais vivenciamos os principais paralelos possíveis de serem feitos no momento.

O segundo ano da HQ (o que corresponde às edições 13 a 24) é todo dedicado às eleições presidenciais daquele futuro e a cobertura de Spider dos eventos, algo que ele já havia feito anteriormente e que foi o motivo pelo qual ele ganhou reconhecimento profissional e fama. O sistema bipartidarista dos EUA foi mantido até aquele momento e são candidatos o atual presidente, carinhosamente apelidado por Jerusalem de "A Besta", e seu opositor, o então senador Gary Callahan, que ganha o apelido de "Sorridente" porque, bem... Ele sorri. Até demais. E forçadamente.

Spider tem algo a dizer sobre o voto para vocês. De nada.

O protagonista, desde os primórdios de sua carreira, foi uma força contrária ao Chefe de Estado no poder e sempre fez de tudo para infernizar sua vida, mas durante uma conversa franca entre os dois, algo ficou claro: A Besta, apesar de ser um lixo de ser humano, tinha princípios e fazia o mínimo para manter o país funcionando. Não que seja algo impressionante, mas já ia além do que ele imaginava. Investigar o adversário, no entanto, foi mais complicado: era uma figura de pouca relevância política até então, sendo desconhecido pela população geral, inclusive pelo jornalista que, afinal, passou 5 anos longe de todo e qualquer contato com a civilização. Mas ele o faz mesmo assim, expõe alguns escândalos de Callahan e traz o seu verdadeiro eu a tona: o Sorridente odeia a população, pretende fazê-la sofrer e, se eleito, ira acabar com a vida de Spider. Simples assim. E em meio a isso tudo, acontece um atentado que alavanca sua popularidade.

Chega o dia da votação e, apesar de todos os esforços feitos para mostrar que A Besta ainda tinha alguns (poucos) escrúpulos e o Sorridente era puramente diabólico, a população elegeu Gary Cahallan com uma ampla vantagem. E isso revoltou Spider Jerusalem ao máximo pois, por mais que ele tenha cumprido seu dever e dado todos os avisos, o país preferiu ignorar tudo isso e ir direto na pior opção, como voluntários para ver se o abismo tinha fim. O que seguiu a eleição foi uma série de eventos horríveis, indo desde a censura da mídia e da liberdade de expressão até a ordenação de massacres deliberados contra inocentes. Não foi por falta de alerta.

A lição que fica de Transmetropolitan, dentre várias outras, é: ouçam os Spider Jerusalem que estão por aí (e, se possível, SEJA você também um Spider Jerusalem). Confie na realidade diante de seus olhos, não sob a ótica de outros. Ouça o que gente renomada tem a dizer. Procure fontes. E, acima de tudo, não pague para ver se pode piorar, porque pode sim, e muito. Spider parecia a única voz sã berrando para um bando de insanos, foi ignorado e tudo de pior que poderia acontecer, aconteceu. A realidade que vivemos tem mais vozes, mas parece estar seguindo pelo mesmo caminho. Não deixe que o mostrado no quadrinho saia de suas páginas.

A revolta de Spider. E com razão.