segunda-feira, 28 de agosto de 2017

GÊNIOS DA NONA ARTE - #1: Jack Kirby


Bem-vindos ao meu mais novo projeto: o GÊNIOS DA NONA ARTE! Nessa coluna sem periodicidade definida, pretendo falar sobre alguns dos grandes nomes da história dos quadrinhos e seus trabalhos, mas deixando de lado o tom biográfico e mostrando o porquê de sua importância, bem como o que mais me agrada. E, além de roteiristas e desenhistas, também comentarei sobre arte-finalistas, coloristas e até mesmo editores! Dando início a esse trabalho, o homenageado da vez é Jack Kirby, lenda absoluta da indústria que completaria 100 anos na data de hoje.

Muitos foram os criadores que estiveram por trás das HQs desde seus primórdios. Enquanto uns passaram despercebidos, outros vieram, inventaram seus próprios personagens, estabeleceram seus conceitos, contaram suas histórias, deixaram suas marcas, independente da posição que ocupavam. Alguns receberam maior destaque que outros, é verdade, por terem criados propriedades que são relevantes até hoje, desenvolvido tramas que mudaram paradigmas, revolucionado a forma de fazer arte, seja através de traços ultrarrealistas, cinematográficos ou até mesmo intimistas. Mas a lista é enorme, e mesmo hoje segue crescendo.

Acima de todos eles, porém, há Jack Kirby, uma das mentes mais prolíficas de todo o século XX, que concebeu universos de cabo a rabo, trouxe a vida personagens que foram do fantástico ao milagroso, revirou o mundo dos quadrinhos com ideias além do comum, foi da Terra ao espaço e teve sucesso em todas as suas expedições. Seja sozinho ou ao lado de seus mais frequentes colaboradores, foi um dos homens que mais contribuiu para a cultura pop desde a década de 1940, com suas criações tomando conta não apenas dos quadrinhos, mas se espalhando por toda a mídia e ganhando forma na TV, em livros e, principalmente, no cinema.

Kirby, ao lado de Joe Simon, cocriou o Capitão América em 1941, e é o autor da icônica capa da edição #1 da revista, em que o herói dá um soco na cara de Adolf Hitler. Isso, por si só, já seria o suficiente para colocar seu nome entre os maiores do ramo. Mas essa não foi a única colaboração da dupla, que perdurou por anos a fio e ainda rendeu frutos como o Caçador, a Legião Jovem, os Boys Commandos, revitalizou o recém-criado Sandman e ainda se aventurou com histórias voltadas a jovens adultos durante os anos 1950, quando os gibis super-heroicos perderam a popularidade devido ao pós-Guerra.

A lendária capa da edição #1 de "Capitão América", por Joe Simon e Jack Kirby.

Mas foi ao lado de Stan Lee que Jack Kirby desenvolveu seus maiores sucessos. O lançamento de Quarteto Fantástico em 1961 deu o pontapé inicial ao que hoje conhecemos como Universo Marvel e sendo o catalisador para o nascimento de personagens como Thor, Hulk, Homem de Ferro, Homem-Formiga, os X-Men, os Inumanos, Pantera Negra, Surfista Prateado, Galactus, Doutor Destino, Magneto, entre vários outros (e muita gente pode não saber, mas Kirby, embora não creditado, foi fundamental para a criação do Homem-Aranha). A proposta de criar heróis mais próximos da realidade e que pudessem representar o maior número de indivíduos teve impacto imediato na indústria, e o artista, embora não receba todo o reconhecimento que mereça, foi muito responsável por isso tudo, tendo cuidado da identidade visual dos gibis e concebido muitos dos conceitos fundamentais de suas criações, algo que fica claro se refletirmos sobre a maneira que se dava o famigerado Marvel Way.

Após um desentendimento com Lee, justamente por não lhe darem os devidos créditos e exposição como artista envolvido, Jack Kirby deixou a Marvel e passou a ser parte da DC em 1970, onde ele desenvolveu aquele que muitos consideram seu maior trabalho: O Quarto Mundo, tomando como base a mitologia judaico-cristã ao lado da fantasia e da crença de vida inteligente alienígena e criando o universo que permeou as revistas dos Novos Deuses, Senhor Milagre, O Povo da Eternidade e Jimmy Olsen, com histórias protagonizadas por Orion, Pai Celestial, Darkseid, Metron, os próprios Senhor Milagre e Povo do Amanhã, Grande Barda, Oberon, Vovó Bondade, Forrageador, entre outros personagens muito ricos e repletos de ideias interessantes. Também idealizou OMAC, Kamandi e o Demônio Etrigan, de modo que todos esses personagens permeiam até hoje os quadrinhos da editora, prova de que sua passagem, além de prolífica, mudou alguns rumos dentro da casa de Superman, Batman e Mulher-Maravilha.

Desentendimentos também foram parte de seu tempo na Editora das Lendas, e em 1975 acabou retornando para a Marvel (após algumas concessões de Stan Lee), criando Os Eternos, sucessores espirituais do Quarto Mundo, título no qual criou o conceito dos Celestiais, fundamental para o Universo Cósmico da Casa das Ideias. Deu vida ainda a personagens como o Homem-Máquina, colaborou com Lee uma última vez em uma história do Surfista Prateado tida como a primeira Graphic Novel da editora e, ainda insatisfeito com o tratamento que vinha recebendo, foi trabalhar com projetos para a televisão e publicou quadrinhos por outros selos, desenvolvendo mais suas ideias cósmicas com o passar dos anos.

Jack Kirby faleceu em 1994, aos 76 anos, por insuficiência cardíaca. Mas o legado deixado por ele é inestimável, não apenas por suas colaborações, seus personagens e suas histórias, mas também por seu estilo e sua criatividade, incomparáveis dentro do meio. Sua arte rica, dinâmica e detalhada, aliada às cores fortes e até mesmo psicodélicas usadas, foram um marco à época e até hoje servem como inspiração para os mais variados artistas, estejam eles inseridos na indústria ou não. E simplesmente não há como não ficar maravilhado com seu trabalho. Como exemplo, basta observar a imagem abaixo, uma splash-page tirada de Os Eternos:


Ou então esta belíssima arte do Surfista Prateado:


Ler uma história escrita ou que teve a colaboração de Jack Kirby também segue sendo uma experiência mágica. Aventuras recheadas de emoção e bombardeadas de ideias e conceitos a cada página fazem com que seu trabalho continue como referência aos fãs e roteiristas. Edições de Quarteto Fantástico, Novos Deuses ou Senhor Milagre continuam tendo o mesmo valor que tinham na época de suas publicações, graças à criatividade indomável do gênio por trás delas. Um dos relatos que mais gosto a respeito da imaginação de Kirby foi publicado nas edições #1 de seus trabalhos para a DC, escrito por Marv Wolfman sobre o dia que ele e Len Wein foram se encontrar com "O Rei" para discutir sobre um personagem criado por eles e, ao fim do encontro, ele já sabia mais sobre esse herói do que a própria dupla de criadores:


E não são poucos aqueles dentro da indústria que se declaram admiradores de Jack Kirby. Na verdade, é difícil achar alguém que não seja, tanto por seus admiráveis trabalhos quanto por sua personalidade, descrita como adorável por aqueles que tiveram a chance de conhecê-lo. Inúmeras foram as homenagens feitas a ele ao longo dos anos, mas a minha favorita está em Quarteto Fantástico #511, por Mark Waid e Mike Wieringo (para situar: Reed Richards foi tocado em seu rosto pelo Doutor Destino enquanto este usava magia, o Coisa estava morto e os demais integrantes do Quarteto foram atrás dele, mas para voltarem à Terra teriam que se encontrar com "Deus"):







É difícil resumir a importância de Jack Kirby em tão poucas palavras. Mais difícil ainda passar a dimensão completa da qualidade de seus trabalhos. Mas uma vastidão de ideias e conceitos como os que ele desenvolveu em mais de 50 anos de carreira dedicados aos quadrinhos e outras mídias beiram o impossível de serem explorados de forma detalhada em um simples texto como este. O fato é que suas criações resistiram ao teste do tempo, seguiram relevantes durante as décadas e hoje estão mais em voga do que nunca, sendo os pilares dos universos da Marvel e da DC, tanto nos quadrinhos quanto nos filmes, séries, animações e demais meios. E dessa forma, através de todo seu legado, Kirby ainda vive, no imaginário popular e no coração dos fãs e admiradores.

Feliz centenário, Jack "The King" Kirby, onde quer que esteja.

Jack Kirby posa com a esquete original do Senhor Milagre, por volta de 1970. Segundo as histórias, Scott Free e Grande Barda eram os apelidos dele e de sua esposa, de modo que os personagens, também casados nas tramas do Quarto Mundo, eram os avatares super-heroicos do casal.