segunda-feira, 9 de outubro de 2017

[RESENHA] "Blade Runner 2049" (2017)


O que é existir? O que nos define como humanos? O que nos diferencia e nos faz especial comparado aos demais seres vivos com quem compartilhamos o mundo? O que é real, se há de fato um real? Essas são algumas das perguntas fundamentais que tentamos desvendar desde os primórdios, através das ciências, artes e religiões. Essa incessante busca por respostas é sempre acompanhada pelo levantamento de novos questionamentos ao longo do tempo, e um dos mais recentes contribuidores, dentre tantos outros, é Philip K. Dick, autor de livros de ficção científica que desenvolveu histórias cercadas do fantástico, do tecnológico e do que parecia além de seu tempo, mas que se mostravam atemporais e mantiveram-se relevantes por suas reflexões acerca da humanidade, suas questões sobre o âmago do ser e as provocações acerca dos caminhos pelos quais rumamos.

Uma de suas principais obras foi adaptada para os cinemas em Blade Runner, de 1982. Com direção de Ridley Scott e roteiro de Hampton Fancher e David Peoples, o longa mostrava a caçada do ex-policial Rick Deckard (Harrison Ford) a quatro replicantes, robôs orgânicos com formas humanas e inteligência e força sobre-humanas que são proibidos na Terra, os quais buscavam estender suas vidas para além dos quatro anos que lhes foram programados. A trama neo-noir, porém, é apenas o fio condutor em um filme contemplativo, cadenciado, que trata sobre a vida, a existência, sobre a perda da humanidade para os avanços da sociedade em que vivemos, amores improváveis, a luta pela sobrevivência, o quão reais são nossas memórias e, é claro, se androides sonham com ovelhas elétricas. Crítico e reflexivo, com visual esplendoroso e uma trilha sonora que beira o indescritível, acabou não fazendo sucesso entre crítica e público à época de seu lançamento, mas foi revisitado ao longo dos anos, recebeu novas versões para se adequar a visão de seu diretor (sendo a definitiva o Final Cut de 2007) e é hoje um dos maiores clássicos cult dos últimos 50 anos, com importância imensurável para a ficção científica, ao ponto de ser um dos grandes responsáveis pela criação do subgênero cyberpunk.

Seguir um filme como esse não é uma tarefa fácil: é necessário ter algo para se mostrar, que seja relevante como continuidade da história, impactante visualmente e que acrescente à discussão do que já foi mostrado anteriormente. Mas após 35 anos, aconteceu. Blade Runner 2049 é uma obra que serve tanto de forma independente quanto como sequência à adaptação de 1982 (muito embora seja bem melhor aproveitado por aqueles que já o conhecem), cumprindo com competência quaisquer dos papeis incumbidos a ele e vivendo à altura do estabelecido pelo original. Desta vez dirigido por Denis Villeneuve, mas com produção de Ridley Scott e o retorno de Hampton Fancher ao roteiro, juntamente de Michael Green, o longa tem êxito por entender sua posição, saber que não dá para superar seu antecessor, e por isso apresentar algo novo, próprio, com a identidade de seu diretor, mas que respeita tudo o que foi feito antes e trata de expandir seus temas, dar uma progressão natural a sua identidade visual e apresentar novas questões e críticas, ainda mais pertinentes para a época em que vivemos.

A história, que, como o próprio título indica, se passa 30 anos após o primeiro Blade Runner, é focada em K (interpretado por Ryan Gosling), um membro da força policial de Los Angeles que descobre um grande segredo ligado a Deckard e vai em sua busca. Tal segredo também é do interesse do industrialista Niander Wallace (Jared Leto), produtor de replicantes (agora permitidos no planeta) que coloca Luv (Silvia Hoeks) nessa procura. Tal como no clássico, porém, a trama é apenas o pano de fundo em um filme despreocupado com sua duração e que segue um ritmo próprio para tratar sobre empatia, a necessidade de se sentir único e especial, uma existência limitada ao que praticamos ou nos mandam fazer, ser mais humano do que os próprios seres humanos, a manipulação de nossas próprias memórias, o desenvolvimento de sentimentos por máquinas e inteligências artificiais, a importância de ser reconhecido pela sociedade e os custos do progresso, bem como seus reflexos para o mundo e sua população. Talvez até mais que no original, a preocupação maior do filme é apresentar e discutir seus questionamentos, dando tempo suficiente, tanto aos personagens quanto aos espectadores, para divagarem e refletirem sobre eles, ao mesmo tempo que conduz a narrativa de forma orgânica.

O tom de 2049 também é definido por sua estética, apresentando grande fidelidade ao longa de 1982 ao mesmo tempo que sabe tirar proveito dos avanços tecnológicos que se deram desde aquela época, ainda expandindo e avançando todo o universo apresentando anteriormente. A cidade está ainda mais suja, poluída visualmente, segregada, opressora, claustrofóbica e sem sinal de luz solar, recheada de construções faraônicas e megalomaníacas. Impressionam também o lixão de San Diego e os restos abandonados da Las Vegas futurista, ainda mais colossal do que Los Angeles. O visual ainda é marcado pelo jogo de luzes e filtros que fazem de cada ambientação única, bem como a construção das cenas, que respeitam os padrões do original enquanto tem um estilo muito próprio, mérito total de Villeneuve e do diretor de fotografia Roger Deakins. E, por fim, é valido o destaque para toda a equipe de efeitos especiais, seja pelo desenvolvimento dos gigantescos e detalhados cenários de forma prática ou por toda a manipulação digital realizada, em especial naquela cena, capaz de embasbacar qualquer um tamanho seu realismo.

O impacto de Blade Runner 2049 não seria o mesmo sem suas atuações, porém. Fica claro que cada um dos atores e atrizes ali presentes deram o máximo de si para conseguir dar vida a seus personagens e transmitir todo o peso de suas existências de modo a refletir nas temáticas da obra. Os destaques óbvios ficam para Jared Leto e Harrison Ford, com o primeiro interpretando seu Niander Wallace de forma aterradora, obsessiva, beirando o desumano e o psicótico; enquanto o segundo retorna a Deckard com todas suas falhas e virtudes, transparecendo mais do que nunca suas fragilidades em mais uma grande performance de sua carreira de renome. Não fica muito atrás, porém, a atuação de Ana de Armas como Joi, repleta de carisma e empatia em um irônico contraste com suas condições de existência. Mesmo coadjuvantes como Robin Wright, Dave Bautista e Mackenzie Davis merecem ser citados por seus desempenhos. E quanto a Ryan Gosling, fica claro que a escolha do ator para o papel principal foi mais que adequada, superando suas limitações e mostrando-se bastante expressivo, inclusive no comovente desfecho, no qual ele é essencial.

Talvez o único ponto que deixou um pouco a desejar seja a parte musical. Não que a trilha sonora composta por Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch seja ruim, pelo contrário: funcionando como um catalizador para a tonalidade do filme, ela o conduz de forma densa, grave e até mesmo trágica. Entretanto, mesmo com composições marcantes, a falta de ao menos um tema impactante é sentida, especialmente se pensarmos no Blade Runner clássico e seu Main Titles, Love Theme, Blade Runner Blues, Rachael's Song e End Titles. Ainda assim, tem o mérito de em momento algum copiar o que o grego Vangelis fez anteriormente, respeitando seu trabalho e incorporando alguns de seus elementos, mas mantendo uma identidade própria.

Definir Blade Runner 2049, seja como longa individual ou continuação de um dos principais clássicos da ficção científica, é uma tarefa ingrata. Os esforços aplicados por todos os envolvidos na produção faz dele um resultado singular, com estilo e assinatura, ao mesmo tempo que possui toda uma conexão com o material original. Seu maior mérito, porém, foi expandir os temas e questionamentos do primeiro filme, dando a eles uma interpretação de seu diretor sem perder a relação com o estabelecido antes. Complexo e estonteante, deverá, tal qual as obras que tratam das perguntas fundamentais da vida, ser revisitado muitas vezes antes de sua plena compreensão. Mesmo assim, sua principal mensagem é mais do que clara e relevante para atualidade, sobre algo que muito nos falta e que, se continuarmos assim, nos fará viver em uma sociedade tão sórdida quanto a apresentada.

TRAILER: